Dados do Trabalho
Título
RETALHO ANTEROLATERAL DA COXA PARA TRATAMENTO DE SEQUELA DE ANGINA DE LUDWIG
Resumo
A angina de Ludwig é um processo infeccioso polimicrobiano, de origem odontogênica na maioria das vezes, que necessita de diagnóstico e tratamento precoces, agravada por doenças sistêmicas. Procedimentos cirúrgicos podem ser necessários com desbridamentos cirúrgicos e confecção de retalhos para reconstrução. O retalho anterolateral da coxa é um retalho livre com inúmeras vantagens, como uma grande área doadora e mínimas sequelas funcionais. O objetivo deste artigo é relatar um caso de no qual foi empregado um retalho anterolateral da coxa para tratamento de sequela de quadro grave de Angina de Ludwig.
Introdução
A angina de Ludwig é um processo infeccioso polimicrobiano de rápida disseminação que envolve os espaços submandibular, sublingual e submentoniano1. Em 90% dos casos é de origem odontogênica, principalmente de segundos e terceiros molares inferiores, cujas raízes se estendem inferiormente à linha milo-hióidea, tornando-se assim, a principal via de disseminação de infecção para o espaço submandibular2,3.
Doenças locais ou sistêmicas alteram a homeostasia do organismo, favorecendo a evolução e disseminação do processo infeccioso4.
O tratamento inicial é clínico, baseado na antibioticoterapia de largos espectro. Procedimentos adicionais como a drenagem de coleções e desbridamentos de tecidos desvitalizados podem ser necessários. Se a infecção for de origem odontogênica, a exodontia do elemento dentário acometido é primordial para o sucesso do tratamento5,6.
O retalho anterolateral da coxa apresenta uma vasta indicação na literatura para reconstrução de grandes perdas de substância em cabeça e pescoço, tronco e extremidades de membros7-12. Sua versatilidade se deve ao seu longo pedículo vascular, à possibilidade de retirada de uma grande ilha de pele, à possibilidade de levar um retalho com diferentes tipos de tecido associados e ao fato de possuir uma baixa morbidade da área doadora9,13,14.
O objetivo deste trabalho é apresentar a aplicação do retalho livre anterolateral da coxa na reconstrução cervical após grande desbridamento cirúrgico devido a quadro de Angina de Ludwig.
Objetivo
O objetivo deste trabalho é relatar o Tratamento com Retalho Microcirurgico de um paciente que evoluiu com Angina de Ludwig.
Método
Trata-se de um trabalho retrospectivo
Resultado
Paciente JGM, 27 anos, sexo masculino, portador de DM tipo 1, admitido no Instituto Dr José Frota 12 dias após início de tratamento endodôntico no elemento dentário 47, com quadro de Angina de Ludwig associado a fasceíte necrotizante em região submandibular bilateral e tórax superior (Figura 1). Hemograma mostrava leucocitose de 14.000. O paciente foi submetido a 3 procedimentos cirúrgicos consecutivos para drenagem de abscesso, desbridamento de tecidos desvitalizados e exodontia do 47.
Figura 1: Área de necrose em região cervical associada a fasceíte necrotizante.
Paciente apresentou no 13º dia pós operatório quadro de dispneia súbita associado a edema assimétrico de membros inferiores (MMII). Ultrassonografia com doppler venoso de MMII compatível com trombose venosa profunda em membro inferior direito. Paciente encaminhado a UTI com hipótese de Tromboembolismo pulmonar.
Após melhora clínica, foi encaminhado a Cirurgia Plástica. No 86º dia de internação hospitalar (DIH) foi submetido confecção de Retalho livre anterolateral da coxa esquerda para reconstrução de perda de substância em região cervical, através da anastomose de vasos cervicais transversos com ramo da artéria circunflexa femoral lateral.
Dois procedimentos cirúrgicos adicionais foram necessários, o primeiro para desbridamento de borda de retalho e o segundo para enxerto de áreas cruentas remanescentes.
Durante internação hospitalar, paciente fez uso de Polimixina B e Teicoplanina por 14 dias, seguido de Fluconazol por 10 dias e Meropenem por mais 07 dias.
Recebeu alta no 104º DIH. Realizado refinamento de retalho após 244 dias de pós operatório (figura 2)
Figura 2: Aspecto pós operatório – 244º DPO do retalho livre e após refinamento
Discussão
Angina de Ludwig é uma celulite de desenvolvimento rápido, que envolve o assoalho da boca e o espaço submandibular, sendo potencialmente fatal15.
Em aproximadamente 70-90% dos casos está relacionada com infecção odontogênica, principalmente nos segundos e terceiros molares inferiores, já que as raízes desses elementos dentários se localizam abaixo da linha milo-hioidea e na eventual progressão da infecção dentária, a subsequente perfuração da cortical da mandíbula em contato com a língua levará a progressão do processo para espaços submandibular, sublingual e submentoniano5, 17,18.
Outras causas incluem lacerações no assoalho bucal, neoplasias bucais infectadas, linfadenite, faringite3,19,20, presença de corpos estranhos no assoalho bucal, fraturas mandibulares compostas, infecções das glândulas salivares, abscessos amigdalianos, otites médias e até o uso de drogas injetáveis nos grandes vasos cervicais21,22.
A microbiota causadora da angina de Ludwig é polimicrobiana, de origem bucal. Os patógenos mais frequentemente isolados são Streptococcus viridans e Staphylococcus aureus, porém anaeróbios como Bacteroides, Peptostreptococcus e Peptococcus também podem representar causas frequentes desta infecção23. A terapia antimicrobiana empírica recomendada é a penicilina G cristalina associada ou não com um aminoglicosídeo e metronidazol. Para pacientes alérgicos a penicilina a clindamicina pode ser utilizada como opção24. A terapia definitiva deve ser baseada em antibiograma. No caso descrito, a antibioticoterapia foi orientada pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do serviço.
Em pacientes que desenvolvem a infecção, geralmente há associados aos fatores etiológicos locais, a presença de doenças sistêmicas, como diabetes mellitus, desnutrição, doenças hepáticas, doenças imunodepressoras e transplante de órgãos25. No caso clínico supracitado, o paciente foi diagnosticado com Diabetes Mellitus tipo 1.
Dentre as várias complicações da Angina de Ludwig podemos destacar a obstrução das vias aéreas, mediastinite, sepse e choque séptico, empiema, fasceíte necrosante, derrame pericárdico, osteomielite, abscesso subfrênico, pneumonia por aspiração e derrame pleural26. No caso do paciente descrito, o mesmo apresentou uma fasceíte necrosante, com necessidade de grande desbridamento cirúrgico, ocasionando uma extensa área de perda de substância em região cervical e tórax superior, com indicação de reconstrução com retalho microcirúrgico pela indisponibilidade tecidos locais viáveis para a reconstrução.
A primeira descrição do retalho Anterolateral da Coxa (ALC) foi feita em 1984 por Song e colaboradores, como um retalho baseado em perfurantes septocutâneas da artéria circunflexa femoral lateral13, a qual envia perfurantes através do septo ou do músculo vasto lateral para uma extensa área de pele27.
Atualmente, o retalho ALC vem ganhando espaço na microcirurgia devido a sua versatilidade28.Seu longo pedículo vascular pode chegar até 8 a 16cm de comprimento9,14, uma grande ilha de pele de aproximadamente 25cm x 18cm pode ser perfundida por somente uma perfurante, proporcionando uma extensa área doadora7 e posterior fechamento primário se a área doadora tiver largura menor que 9 cm27.
A possibilidade de levar um retalho com diferentes tipos de tecido associados como a musculatura27 adjacente também representa uma vantagem desse retalho, assim como possuir uma baixa morbidade da área doadora e com poucas sequelas funcionais13,14. Outras vantagens relacionadas a esse retalho como a possibilidade de manter o decúbito do paciente durante o procedimento cirúrgico e o fato do mesmo poder ser retirado fino, com a espessura de até 4 milímetros, fez com que fosse a melhor opção para o caso descrito, além disso, este retalho pode ser sensibilizado, através da inclusão do ramo anterior do nervo cutâneo lateral da coxa14,29.
Como desvantagens do ALC podemos citar a grande quantidade de folículos pilosos, principalmente nos pacientes do gênero masculino, a dificuldade relativa na dissecção de perfurantes miocutâneas e a necessidade de refinamento do retalho em pacientes com maior espessura do subcutâneo na região anterior da coxa27. No caso descrito, houve uma maior presença de folículos pilosos na região cervical, assim como necessidade de futuro refinamento do retalho para melhor adaptação e mobilidade cervical.
Conclusão
A angina de Ludwig é uma infecção grave, de rápida progressão e com potencial letalidade, devendo ser diagnosticada e tratada prontamente, por uma equipe multidisciplinar.
Nesse caso clínico, o retalho anterolateral da coxa representou uma excelente opção para cobertura do defeito cervical, com resultados funcionais e estéticos aceitáveis e o mínimo de comprometimento da área doadora, sem sequelas funcionais.
Referências
1. GOLDBERG HM, TOPAZIAN RG. Infecções odontogênicas e infecções dos espaços fasciais profundos de origem dentária. In: Topazian RG, Golberg MH, Hupp JR. Infecções orais e maxilofaciais. São Paulo: Ed. Santos; p. 124-36, 1997.
2. TSCHIASSNY, Kurt. Ludwig's angina: An anatomic study of the role of the lower molar teeth in its pathogenesis. Archives of Otolaryngology, v. 38, n. 5, p. 485-496, 1943.
3. BROSS-SORIANO, Daniel et al. Management of Ludwig's angina with small neck incisions: 18 years experience. Otolaryngology--Head and Neck Surgery, v. 130, n. 6, p. 712-717, 2004.
4. SAIFELDEEN, K.; EVANS, R. Ludwig’s angina. Emergency Medicine Journal, v. 21, n. 2, p. 242-243, 2004.
5. BARAKATE, Michael S. et al. Ludwig's angina: report of a case and review of management issues. Annals of Otology, Rhinology & Laryngology, v. 110, n. 5, p. 453-456, 2001.
6. LERNER, D. N.; TROOST, T. Submandibular sialadenitis presenting as Ludwig's angina. Ear, Nose, & Throat Journal, v. 70, n. 11, p. 807-809, 1991.
7. KOSHIMA, Isao et al. Free anterolateral thigh flaps for reconstruction of head and neck defects. Plastic and Reconstructive Surgery, v. 92, n. 3, p. 421-428, 1993.
8. KIMURA, Naohiro et al. Clinical application of the free thin anterolateral thigh flap in 31 consecutive patients. Plastic and reconstructive surgery, v. 108, n. 5, p. 1197-208; discussion 1209, 2001.
9. WEI, Fu-chan et al. Have we found an ideal soft-tissue flap? An experience with 672 anterolateral thigh flaps. Plastic and reconstructive surgery, v. 109, n. 7, p. 2219-2226, 2002.
10. HSIEH, Ching-Hua et al. Free anterolateral thigh adipofascial perforator flap. Plastic and reconstructive surgery, v. 112, n. 4, p. 976-982, 2003.
11. ADANI, Roberto et al. Hand reconstruction using the thin anterolateral thigh flap. Plastic and Reconstructive Surgery, v. 116, n. 2, p. 467-473, 2005.
12. YANG, Wen-Guei et al. Thin anterolateral thigh perforator flap using a modified perforator microdissection technique and its clinical application for foot resurfacing. Plastic and reconstructive surgery, v. 117, n. 3, p. 1004-1008, 2006.
13. SONG, Ye-guang; CHEN, Guo-zhang; SONG, Ye-liang. The free thigh flap: a new free flap concept based on the septocutaneous artery. British journal of plastic surgery, v. 37, n. 2, p. 149-159, 1984.
14. KIMATA, Yoshihiro et al. Anatomic variations and technical problems of the anterolateral thigh flap: a report of 74 cases. Plastic and Reconstructive Surgery, v. 102, n. 5, p. 1517-1523, 1998.
15. TAVARES, Sócrates Steffano Silva et al. Angina de Ludwig: revisão de literatura e relato de caso. Rev. cir. traumatol. buco-maxilo-fac, 2009.
17. MORELAND, Larry W.; COREY, Jacquelynne; MCKENZIE, Robin. Ludwig's angina: report of a case and review of the literature. Archives of Internal Medicine, v. 148, n. 2, p. 461-466, 1988.
18. BUSCH, Richard F.; SHAH, Darshan. Ludwig's angina: improved treatment. Otolaryngology—Head and Neck Surgery, v. 117, n. 6, p. S172-S175, 1997.
19. SRIROMPOTONG, Somchai; ART-SMART, Thumnu. Ludwig's angina: a clinical review. European archives of oto-rhino-laryngology, v. 260, n. 7, p. 401-403, 2003.
20. IWU, C. O. Ludwig's angina: report of seven cases and review of current concepts in management. British Journal of Oral and Maxillofacial Surgery, v. 28, n. 3, p. 189-193, 1990.
21. SOARES, Lívia Prates et al. Angina de Ludwig associada à presença de corpo estranho em região sublingual. Revista da Faculdade de Odontologia-UPF, v. 9, n. 2, 2004.
22. TOPAZIAN RG, GOLDBERG MH, Hupp JR. Infecções orais e maxilofaciais. 4a ed. São Paulo: Santos; 2006.
23. PARKER, Emma; MORTIMORE, Gerri. Ludwig's angina: a multidisciplinary concern. British Journal of Nursing, v. 28, n. 9, p. 547-551, 2019.
24. FOGAÇA, Patrícia de Fátima Leite et al. Angina de Ludwig: uma infecção grave. Rev Port Estomatol Cir Maxilofac, v. 47, n. 3, p. 156-7, 2006.
25. GULINELLI, Jéssica Lemos et al. Angina de Ludwig. ROBRAC, 2007.
26. MILLER, Catherine R.; VON CROWNS, Kendall; WILLOUGHBY, Vickie. Fatal Ludwig's angina: cases of lethal spread of odontogenic infection. Academic forensic pathology, v. 8, n. 1, p. 150-169, 2018.
27. SCHULZ, Julie Indira Fujita. Retalho livre anterolateral da coxa para reconstrução de extremidades. Arquivos Catarinenses de Medicina, v. 36, n. Suplemento 01, 2007.
28. XIONG, Lingyun et al. Free flaps for reconstruction of soft tissue defects in lower extremity: A meta‐analysis on microsurgical outcome and safety. Microsurgery, v. 36, n. 6, p. 511-524, 2016.
29. KUO, Yur-Ren et al. Free anterolateral thigh flap for extremity reconstruction: clinical experience and functional assessment of donor site. Plastic and reconstructive surgery, v. 107, n. 7, p. 1766-1771, 2001.
Palavras Chave
MICROCIRURGIA
Arquivos
Área
Cirurgia Plástica
Categoria
Cirurgia Plástica
Instituições
Instituto Dr José Frota - Ceará - Brasil
Autores
OLGA LANUSA LEITE VELOSO, BRENO BEZERRA GOMES DE PINHO PESSOA, DOUGLAS RODRIGUES DE MACEDO, JORGE RICARDO RABINES TAMAYO, HELBERT PEREIRA MATIAS